Português para Surdos

Português para surdos

Compreensão dos surdos sobre a Língua Portuguesa

Importante: ao longo dessa página você deverá clicar nos vídeos para visualizar as interpretações.

O que vem à sua mente ao pensar na pessoa surda? Talvez você pense que são aquelas pessoas que não escutam. É bastante comum que muitos façam a associação da falta de um sentido à  mudez, ao não ouvir. No entanto, as pessoas surdas podem ser vistas para além do estigma da falta ou do corpo limitado. Talvez você tenha pensado nas pessoas que fazem uso da Língua de Sinais, que fazem leitura labial e/ou usam aparelhos auditivos. Contudo nem todos surdos sabem Libras, assim como nem todos fazem leitura labial. A comunidade surda não é homogênea, ou seja, ela é composta pela diversidade e multiplicidade de identidades. E como qualquer outro grupo social ela também é permeada de conflitos. 

Assim, primeiro, precisamos considerar a diversidade que compõe a comunidade surda.  Nesta proposta, o estudo é centrado aos surdos sinalizantes, aqueles que têm a língua de sinais como a sua primeira língua, ou seja, no contexto do Brasil, se comunicam através da Libras – Língua Brasileira de Sinais, e o português escrito se insere como segunda língua. 

Se você é docente ou algum profissional da educação que já atuou com surdos, já percebeu que existem algumas especificidades que devem ser levadas em conta na sua prática educacional. Uma delas é que nem todos os surdos sabem ler e escrever na língua portuguesa. Vários são os fatores que podem explicar esse fenômeno. Considerando as pessoas não surdas, a relação que elas estabelecem com o português é oral e auditiva, ou seja, muito provavelmente aprende-se a falar e a entender a língua por meio das experiências e interações que se tem com a família e comunidade desde criança. E só depois, quando a idade avança, é que se começa o processo de escolarização, aprende-se a decodificar o português a partir da leitura e da escrita. Então, antes de aprender a ler e a escrever o ouvinte já conhece e entende português na oralidade por ser sua língua materna. 

Mas agora, vamos pensar numa criança surda que tenha nascido numa família de ouvintes e que, por várias questões, não teve o contato com a Libras e muito menos a possibilidade de aprender o português. Essa criança, na verdade, passou por uma situação de privação de língua. Quando chega o momento de ser alfabetizada, ela não desenvolveu nenhuma das linguagens correntes socialmente: a libras e a língua portuguesa – para que consiga expressar, conceituar e subjetivar tudo o que acontece à sua volta. A sua linguagem e a forma de comunicação são limitadas a gestos e mímicas. Até que um dia, depara-se com uma outra pessoa surda fluente na Libras e através desse contato começa adquirir uma língua para se expressar. Este pequeno relato reflete o que muitos surdos vivem e, provavelmente, um dos grandes conflitos sociais que vivem: a falta de identificação social e a falta de entendimento dessa ausência de identificação.

Esta é a experiência que a maioria dos surdos enfrentam. Emmanuelle Laborit (1994), uma atriz surda e francesa, conta a sua descoberta, aos 7 anos de idade, quando ela e seu pai encontraram um professor surdo e um intérprete numa oficina de língua de sinais, de que as pessoas têm um nome. Antes disso, não compreendia claramente que seus pais, familiares e até ela própria tinha um nome para se identificar. Descobriu isso com a língua de sinais, “compreendia por fim que tinha uma identidade. Eu: Emmanuelle” (1994, p. 51)

A sua outra grande descoberta foi em Washington, ainda criança, quando viajou com os seus pais para conhecer a Gallaudet University, a única universidade bilíngue voltada para pessoas surdas no mundo. Ela relata:

A esperança que me deram aquelas pessoas, em Washington, aquele lado positivo, levou-me a uma descoberta, ainda outra, muito importante, a respeito de mim mesma: compreendi que eu era surda. Ninguém ainda me havia dito isso. Uma noite, em Washington, entrei como um furacão no quarto dos meus pais, muito nervosa, excessivamente agitada. Como me exprimia muito rapidamente, eles não entenderam; recomecei mais calmamente: “Eu sou surda!”. Eu sou surda não quer dizer o mesmo que “eu não escuto”. Quer dizer: “Compreendi que sou surda”. Era uma frase positiva e determinante. Admitia em minha cabeça o fato de ser surda, compreendia isso, analisava isso, porque me havia dado uma língua que me permitia fazê-lo. Compreendia que meus pais tinham sua língua, seu meio de comunicação, e que eu tinha o meu. Pertencia a uma comunidade, tinha uma verdadeira identidade. (LABORIT, 1994, p. 67).

Essas descobertas só foram possibilitadas a ela por meio da língua de sinais de forma tardia. A compreensão da surdez como uma qualidade e não mais como defeito, o acesso a uma língua que lhe é confortável aproximaram o mundo à sua volta e possibilitaram construir e constituir a identidade, o seu ‘eu’. Com a língua de sinais, ela pode enunciar, narrar-se e contar sobre o que sente, o que vê e vivencia. As fronteiras se expandiram e o seu ‘eu’ também. Então houve a necessidade pela busca do conhecimento, “tinha construído uma reflexão própria: necessidade de falar, de dizer tudo, de contar tudo, de compreender tudo” (p. 69). O relato de Emmanuelle exemplifica bem o que a maioria dos surdos vivenciam com a privação da língua.

Quando muitos chegam à escola, deparam-se com o desafio da escrita de uma língua que nunca ouviu. Os docentes também são desafiados a pensar a sua prática pedagógica voltada para estes casos. O que comumente acontece na educação infantil, quando a equipe escolar não conhece as especificidades da criança surda, é a tentativa de alfabetização por meio do método fônico, ou seja, ensinar a escrita associada à prática oral-auditiva do português. Tal prática é, por si só, descabida e desrespeitosa, já que o método fônico, como o próprio nome aponta, indica a necessidade de uma consciência fonológica – do som – que o ser surdo não desenvolveu. Mas isso não implica que ele não possa desenvolver outra forma de consciência linguística, por exemplo, por meio de sinais.

Os surdos sinalizantes utilizam a língua de sinais como sua primeira língua (L1) e neste caso, o português escrito se insere na perspectiva de segunda língua (L2). Todavia, nos contextos de escolas regulares, a língua portuguesa em sala de aula é utilizada na perspectiva de língua materna entre os seus falantes e o estudante surdo que está “incluído” naquele contexto não experiencia essa língua da mesma forma que os demais. E na prática docente isso se apresenta como um desafio. Em muitos casos, até mesmo no ensino médio, o ensino da língua oral para este estudante se dá por meio de estratégias que subjugam a sua primeira língua, a Libras, e os recursos metodológicos utilizados tendem a priorizar o copismo repetitivo e a memorização de léxicos desapropriados da prática social do letramento.

Um dos inúmeros fatores que justificam essa prática pedagógica equivocada é a falta de formação docente em relação aos procedimentos com o ensino de português escrito para estudantes que não têm uma relação oral-auditiva com a língua como os alunos ouvintes têm. Além disso, vale destacar, o desconhecimento que se tem sobre a riqueza cultural e linguística das Línguas de Sinais.

A pesquisadora Karnopp (2015) aponta, em um dos seus trabalhos, a dificuldade que os alunos surdos têm em relação à leitura e à escrita; ela informa que a prática de letramento para os surdos, no contexto escolar, não se estabelece de forma efetiva; a língua de sinais nem sempre é aceita, e que existe um não reconhecimento das produções textuais e das narrativas construídas na primeira língua do surdo.

Para Strobel (2015), a relação que se dá em uma escola de ouvintes com pessoas surdas é de hierarquização da Língua Portuguesa sobre a Língua de Sinais, da articulação oral sobre a sinalidade; assim, a pesquisadora questiona se a educação oferecida neste contexto é de fato inclusiva?

Um dos estudos de Lodi et al. (2017) aponta que a escola reduz o ensino da língua portuguesa a práticas desvinculadas ao contexto social em que o aluno surdo está inserido; ela critica a imposição desta língua e a sua desassociação dos conhecimentos e experiências construídos anteriormente por esses sujeitos, limitando o ensino da leitura e da escrita à memorização de regras gramaticais. É importante destacar que esse distanciamento é bem comum, uma vez que as estratégias pedagógicas para o ensino de língua, de maneira geral, não são contextualizadas e focam na memorização, mesmo para os ouvintes. Disso pode advir a dificuldade do docente em ampliar as suas práticas para atender à especificidade do ser surdo.

Até aqui compreendemos as especificidades linguísticas que envolvem o estudante surdo. Agora, vamos imaginar a seguinte situação: você é docente num curso do ensino médio técnico integrado e em uma das turmas que leciona há uma aluna surda que é acompanhada por um profissional tradutor/intérprete de Libras/LP. Nesse contexto, como avaliá-la considerando que as suas atividades têm como base o uso da leitura e da escrita do português?

O primeiro passo é ter uma aproximação e melhor contato com a aluna e com o tradutor/intérprete. Antes de qualquer ação, para orientar melhor o seu trabalho pedagógico, é necessário conhecer quem é a aluna e a trajetória dela até o ensino médio. Esse contato professor-aluno e professor-intérprete é primordial para um planejamento de estratégias mais contextualizadas à realidade dela. Com essa aproximação, é possível alinhar algumas orientações e insights como tornar a sua prática mais inclusiva.

A partir da nossa relação com o grupo surdo e da compreensão da necessidade do ser surdo, reunimos aqui algumas sugestões que podem auxiliar o docente em sua prática:

1

Estabelecer contato com o núcleo responsável pelas questões de inclusão e acessibilidade da sua instituição. No contexto dos IF’s o NAPNE – Núcleo de Atendimento às Pessoas com Necessidades Específicas, é o responsável pela implementação de ações inclusivas.

2

Desenvolver uma aproximação com o profissional tradutor/intérprete de Libras para troca de conhecimentos, insights e impressões a respeito da aula e do planejamento.

3

Compartilhar previamente o planejamento e materiais que irá usar em sala para que o profissional tradutor/intérprete possa se inteirar e estudar o conteúdo. É muito importante compartilhar porque contribui para uma melhor qualidade no processo tradutório e facilita a compreensão pelo aluno surdo.

4

Conhecer um pouco mais sobre o aluno surdo, aproximar-se, conversar com ele, estabelecer contato e valorizar este momento na promoção das estratégias pedagógicas, para fortalecer o diálogo.

5

No seu planejamento, considere a língua do aluno, no caso, a Libras. Procure por materiais que já tenham acessibilidade. Busque recursos visuais para apoiar as suas aulas.

6

Em caso de atividades, aceite a possibilidade do aluno fazê-la em Língua de Sinais, através de uma gravação de vídeo ou apresentação em sala. Outra possibilidade é que, enquanto o estudante sinaliza para comunicar a atividade, o intérprete faça a transcrição. 

7

Além das atividades em Libras, também incentive que o aluno escreva com o nível de conhecimento que tiver do português escrito.

8

Participe de formações e cursos voltados para a educação de surdos e sobre práticas inclusivas. 

9

Valorize sempre o conhecimento prévio do estudante surdo, reconhecido na aproximação com ele.